De acordo
com a Bíblia, que papel a lei mosaica tem na vida do crente da atualidade?
Não podemos chegar a uma resposta que glorifique a Deus e que seja
teologicamente correta, se não levarmos em consideração a completitude e a
complexidade do testemunho do Novo Testamento e da diversidade do uso que
faz da palavra “lei”. O Novo Testamento não nos oferece uma resposta
fácil e sem dificuldades para essa questão. Mesmo assim, podemos descobrir
a resposta de forma clara e segura por meio do estudo cuidadoso.Algumas
passagens do Novo Testamento parecem advogar uma atitude positiva em
relação à lei do Antigo Testamento. Paulo afirma que “a Lei é santa, e o
mandamento é santo, justo e bom” (Rm 7.12); ele cita a lei do Antigo
Testamento como garantia de autoridade para os juízos éticos (e.g., 1Co 9.9;
Ef 6.1,2). Paulo escreveu abertamente: “No íntimo do meu ser tenho prazer
na Lei de Deus” (Rm 7.22). Tiago ensina que os seus leitores fazem bem em
obedecer à “lei do Reino”, e os adverte para que não desobedeçam a nenhum
aspecto dela (Tg 2.8-10); de acordo com ele, a nossa função é
sermos praticantes da lei, não juízes dela (4.11,12). Pedro desafia os
crentes a viverem vidas santas baseadas nas exigências da lei (1.15,16), e
João identifica cumprir a lei tanto com conhecer a Deus quanto com amá-lo.
(1Jo 2.3,4; 5.3; 2Jo 6). De alguma maneira importante para a vida cristã,
a lei do Antigo Testamento é incontestavelmente mantida pelos autores do
Novo Testamento. Não obstante esses endossos da lei, o Novo Testamento
também fala da lei de forma negativa e parece descartá-la. Paulo declara:
“Eu morri para a Lei, a fim de viver para Deus” (Gl 2.19). Ele não se
considera como estando “debaixo da Lei” (1Co 9.20). Os seus leitores “não
estão debaixo da Lei, mas debaixo da graça”; aliás — “fomos libertados da
Lei” (Rm 6.14; 7.6). Em outro texto, Paulo diz que Cristo aboliu “a Lei
dos mandamentos expressa em ordenanças” (Ef 2.15). De alguma maneira, isso
é vital para a mensagem do evangelho e, por isso, a lei do Antigo
Testamento é indisputavelmente confrontada pelos autores do Novo
Testamento.Essa ambivalência e aparente contradição na postura do
Novo Testamento em relação à lei do Antigo Testamento começa a ser
esclarecida e resolvida, quando Paulo declara em 1 Timóteo 1.8: “Sabemos
que a Lei é boa, se alguém a usa de maneira adequada”. O testemunho
infalível de Paulo é que não deve haver dúvida sobre o fato de que a
instrução moral contida nos mandamentos da lei do Antigo Testamento é
inerentemente boa. As exigências éticas da lei não refletem nada mais do
que a santidade, a justiça e a bondade do próprio Deus (1Pe 1.15,16; v. Rm
6.18,22 com 7.12 14). Paulo afirmou que “a Lei é espiritual” (Rm 7.14),
para que os que vivem “segundo o Espírito” cumpram de fato a ordenança da
lei, ao passo que “a mentalidade da carne é inimiga de Deus porque não se
submete à Lei de Deus” (Rm 8.4,7).Visto que a lei é uma “cópia” do caráter de
Deus, a reação da pessoa à lei é a reação da pessoa ao próprio Deus.
Portanto, as prescrições morais da lei precisam ser vistas como algo
positivo.No entanto, a excelência da lei é manchada se for usada de uma
forma contrária à intenção de Deus. Paulo qualifica sua afirmação
categórica a respeito da excelência da lei ao acrescentar: “se alguém a
usa de maneira adequada”. A lei precisa ser usada de acordo com sua
natureza, direção e intenção. Isso obviamente implica que as pessoas podem
fazer mau uso da lei podem interpretá-la e usá-la de forma contrária aos
propósitos de Deus.Nesse caso, a lei seria pervertida em algo contrário à sua
natureza e intenção, tornando-a má e ímpia. Esse tipo de uso da boa lei de
Deus é condenado aberta e repetidamente nas páginas do Novo Testamento.
Qual seria esse uso ilícito da lei? Nós o encontramos na atitude dos
fariseus e judaizantes que promoviam o mérito próprio diante de Deus, ao
realizarem obras da lei.Foi o orgulho indescritível e o auto-engano que fez com
que os judeus confiassem na lei e se sentissem seguros de que possuíam na
lei “a expressão do conhecimento e da verdade”, que os tornou mestres
autojustificados que ensinavam aos outros (Rm 2.17-21), quando na verdade
aqueles que “se orgulha[m] da Lei” eram evidentemente culpados de
transgressão da lei e desonram a Deus (v. 23,24). Os fariseus estavam
cegos pela obsessão de se justificar diante das pessoas (Lc 16.15),
confiando em si mesmos que eram de fato justos (Lc 18.9); eles achavam que
já não precisavam de um Salvador assim como uma pessoa sadia não precisa
de médico (Mt 9.12,13). Mesmo assim, Deus conhecia profundamente o coração
deles; independentemente das aparências exteriores de justiça, eram
interiormente corrompidos, cheios de iniqüidade e espiritualmente mortos
(Mt 23.27,28). Ao tentarem estabelecer a sua própria justiça, esses judeus
não podiam se submeter à justiça genuína de Deus (Rm 10.3).Nos primeiros
dias da igreja cristã, surgiu um partido entre os fariseus que se negou a
abandonar esse uso perverso e ilícito da lei de Deus e não reconheceu a
forma em que a realização redentora de Cristo tirara de cena aquelas
porções da lei que prefiguravam sua pessoa e obra. Por conseguinte, as
pessoas dessa linha de pensamento queriam obrigar os gentios a
viverem “como judeus” (Gl 2.14; literalmente, “judaizá-los”). Os
judaizantes insistiam em que os gentios não podiam ser salvos se não
fossem circuncidados e se não cumprissem os aspectos distintivos da
aliança da lei de Moisés (At 15.1,5).A graça precisava ser complementada pelas
obras da lei, ou seja, por meio de submissão autojustificadora às
cerimônias judaicas.Para Paulo, essa atitude dos fariseus e judaizantes em
relação à lei mosaica não era estranha ou desconhecida, pois essa era sua
mentalidade antes da conversão. Ele fora criado como fariseu em relação à
lei (Fp 3.5), e, como ele mesmo diz: “Fui instruído rigorosamente por
Gamaliel na lei de nossos antepassados” (At 22.3). O seu testemunho era:
“No judaísmo, eu superava a maioria dos judeus da minha idade, e era
extremamente zeloso das tradições dos meus antepassados” (Gl 1.14). Ele
sabia o que significava orgulhar-se da lei (v. Rm 2.17-20,23). Da perspectiva
de um homem que está espiritualmente morto, Paulo afirmou certa vez que
“quanto à justiça que há na Lei” ele era “irrepreensível” (Fp 3.6). Ou
seja, em certa época — à parte de uma percepção verdadeira da lei — ele
estava se enganando de tal forma que pensava que estava espiritualmente
vivo e justificado. Somente por meio da ação de convencimento do Espírito
Santo sua consciência finalmente conseguiu compreender o mandamento e
matar sua complacência autojustificadora. “Antes eu vivia sem a Lei, mas
quando o mandamento veio, o pecado reviveu, e eu morri” (Rm 7.9).O QUE A
PRÓPRIA LEI DIZ?Aqui há algo extraordinário, algo que os teólogos não podem
ignorar se quiserem entender corretamente a intenção divina em relação à
lei do Antigo Testamento. Paulo sabia pela sua experiência que ele
precisava morrer para o legalismo, para o uso da lei como um meio de
mérito próprio ou justificação diante de Deus. E, exatamente, onde e como
Paulo aprendeu essa lição fundamental? Observe cuidadosamente o que ele
diz em Gálatas 2.19: “Pois, por meio da Lei eu morri para a Lei, a fim de
viver para Deus”. Foi a própria lei que ensinou Paulo a não buscar a
justiça e a aceitação de Deus por meio de obras da lei! A lei do Antigo
Testamento nunca foi legalista em sua natureza e intenção, embora os
judeus a tenham pervertido nesse propósito interesseiro.Eles simplesmente não
perceberam que “o fim da Lei é Cristo, para a justificação de todo o que
crê” (Rm 10.4). Paulo lamentou que “até hoje o mesmo véu permanece quando
é lida a antiga aliança […] até o dia de hoje, quando Moisés é lido, um
véu cobre os seus corações” (2Co 3.14,15).Paulo claramente classificou e
incluiu a aliança mosaica — a aliança da lei, que tinha edificado um muro
entre judeus e gentios e alienado os incircuncisos da “comunidade de
Israel” — como parte integrante do que ele chamava de “alianças da
promessa” (Ef 2.12). Havia muitas alianças (plural) no Antigo Testamento,
mas todas eram administrações de uma promessa (singular) subjacente de
Deus. Os teólogos podem até falar apropriadamente de “lei” e “graça” como
rótulos convenientes para as duas administrações da aliança (que são, nova
aliança e antiga aliança), mas a Bíblia afirma enfaticamente que as duas
são administrações da graça (ou promessa) como o único caminho para
aceitação diante dele. A aliança da lei foi uma manifestação da promessa
de Deus, não de legalismo.A administração da lei da antiga aliança (ou a
própria administração mosaica) não ofereceu uma forma de salvação nem
tampouco ensinou uma mensagem de justificação que difere daquela
encontrada no evangelho da nova aliança. Ao reconhecer que diante de Deus
ninguém podia ser justificado (Sl 143.2), a antiga aliança prometeu
justificação fundamentada no nome: “O SENHOR é a Nossa Justiça” (Jr 23.6).
O testemunho da antiga aliança era que a justiça tinha de ser imputada,
até mesmo ao grande pai dos judeus, Abraão (Gn 15.6; v. Rm 4.3; Gl 3.6).
Por conseguinte, a literatura do Antigo Testamento fornece evidências
suficientes de que os santos de Deus eram pessoas de fé (v. Hb 11). Paulo
compreendeu muito claramente que o próprio Antigo Testamento ensinava que
os justos viveriam pela fé (He 2.4; v. Rm 1.17; Gl 3.11). O profeta Isaías
proclamou: “Mas no Senhor todos os descendentes de Israel serão
considerados justos e exultarão” (Is 45.25); e mais adiante: “Esta é a
herança dos servos do SENHOR, e esta é a defesa que faço do nome
deles, declara o SENHOR” (54.17).Se permitirmos que a Bíblia se interprete
a si mesma e não introduzirmos nessa interpretação uma antítese teológica
preconcebida entre a nova e a antiga aliança (lei2 e evangelho), somos
levados a concluir que a antiga aliança — a lei de Moisés — foi uma
aliança de graça que ofereceu salvação com base na graça por meio da fé,
assim como o faz a boa nova encontrada no Novo Testamento. A diferença é
que a aliança de Moisés ou da lei olhava para a frente, para a vinda do
Salvador, administrando, assim, as alianças de Deus por meio de promessas,
profecias, ordenanças rituais, tipos e prefigurações que anteviam o
Salvador e sua obra redentora. O evangelho ou a nova aliança proclama a
realização daquilo que a lei antevia, administrando a aliança de Deus por
meio da pregação e dos sacramentos. A essência do relacionamento salvador
de Deus e da aliança é a mesma sob a lei e o evangelho.As Escrituras não
apresentam a aliança de Moisés ou da lei como fundamentalmente opostas à
graça da nova aliança — uma perspectiva errônea (essencialmente
dispensacionalista) que está no cerne de tantas convicções mal-orientadas
sobre a lei hoje. Por exemplo, reflita sobre Hebreus 3—4. De acordo com o
Novo Testamento, por que Deus estava insatisfeito com os israelitas a
ponto de não permitir que entrassem na Terra Prometida?A resposta é que eles
foram desobedientes (Hb 3.18), mas isso é a mesma coisa que dizer que lhes
faltou fé (3.19)! Eles ouviram o evangelho pregado a eles assim como nós o
ouvimos (4.2), mas eles falharam ao não aceitar a provisão prometida por
Deus porque não tiveram fé (4.2) — ou seja, foram culpados de desobediência
(4.6)! Não podemos jogar a fé contra a obediência na antiga aliança; elas
são diferentes lados da mesma moeda, como na nova aliança (Tg 2.14-26).Por
isso Paulo chegou a perguntar tão incredulamente: “Então, a lei opõe-se às
promessas de Deus?” Será que a graça da aliança abraâmica deveria ser
contradita pela lei revelada por Moisés? A resposta do apóstolo foi
um categórico: “De maneira nenhuma!” (Gl 3.21). A lei nunca teve a
intenção de ser um caminho para a autojustificação, como Paulo revela logo
a seguir. Por intermédio do seu esforço autojustificador de ganhar mérito
e favor diante de Deus por meio da obediência à lei, os israelitas não
atingiram a lei de forma alguma (Rm 9.31)! E por que não? “Porque não a
buscava[m] pela fé, mas como se fosse por obras” (v. 32).Se dermos ouvidos
à própria lei, seremos demovidos da idéia de que a lei de Deus tinha a
intenção de ser um caminho para o mérito próprio ou a autojustificação
diante de Deus. A salvação pela graça da nova aliança é o florescimento, o
desenvolvimento e a realização da promessa da graça prevista e anunciada
na antiga aliança. “Pois quantas forem as promessas feitas por Deus,
tantas têm em Cristo o ‘sim’. Por isso, por meio dele, o ‘Amém’
é pronunciado por nós para a glória de Deus” (2Co 1.20). Na maior aula
de Bíblia de todos os tempos, Cristo, “começando por Moisés e todos
os profetas, explicou-lhes o que constava a respeito dele em todas as
Escrituras” (Lc 24.27). Aliás, “Moisés foi fiel como servo em toda a casa
de Deus, dando testemunho do que haveria de ser dito no futuro” (Hb 3.5).
A lei mosaica não está em antítese com o evangelho de Cristo que foi
proclamado posteriormente — assim como também não contradiz a promessa
abraâmica que fora dada 430 anos antes (Gl 3.15-17). Cristo foi o foco e o
alvo da lei de Moisés ou da antiga aliança (Rm 10.4), assim como o foi da
aliança abraâmica e das promessas de antigamente.Paulo insiste em que a
administração mosaica, a lei, não ab-rogou a promessa abraâmica, mas foi
acrescentada “até que viesse o Descendente a quem se referia a promessa”
(Gl 3.17,19) — isto é, foi acrescentada até a vinda de Cristo (v. 16).
Antes da vinda de Cristo, o objeto da nossa fé, o povo de Deus estava “sob
a custódia da Lei, nela encerrado” (v. 23). Isso significa que a lei se tornou
“o nosso tutor até Cristo, para que fôssemos justificados pela fé” (v.
24). Observamos novamente que a teologia paulina vê a aliança mosaica — a
lei — como apontando para Cristo e ela própria ensinando a mesma mensagem
de justificação que o evangelho ou a nova aliança ensina.O aspecto da lei que
mais distinguia a administração mosaica, e fazia esse papel de apontar
adiante para Cristo, e a doutrina da justificação pela fé eram o que hoje
muitas vezes chamamos de lei “cerimonial”, os rituais e ordenanças
redentoras da antiga aliança (e.g., circuncisão, sacerdócio,
templo, sacrifícios: v. Cl 2.11-13; Hebreus 7—10). O tutor ou mestre a que
Paulo se refere em Gálatas 3.24,25 era a administração mosaica, “a lei”,
especialmente na sua prefiguração cerimonial de Cristo. Das cartas de
Paulo fica claro o seguinte: Paulo estava engajado em uma controvérsia
teológica com os judaizantes, que insistiam na circuncisão (Gl 2.3,4;
5.2-4); ele escolheu como exemplo específico o calendário cerimonial da lei
judaica (Gl 4.10); ele também fala daqueles “princípios elementares do
mundo” (Gl 4.3,9) que Colossenses 2.16,17 descreve mais em detalhes como
“sombras do que haveria de vir”, cuja realidade ou essência é Cristo;
finalmente ele descreve a lei como governando os judeus e ensinando-lhes
que a justificação vem por meio da fé em Cristo (Gl 3.24) — algo que não
se consegue por meio de mandamentos morais como “não furtarás”, mas por
meio de ordenanças sacrificais que vividamente ilustravam o caminho da
salvação. Paulo insiste que agora que Cristo veio como objeto da
nossa fé, já não estamos sob esse tutor, a lei mosaica (Gl 3.25). A
administração mosaica, apropriada para o povo de Deus no estágio inicial
do seu desenvolvimento e educação e contendo somente prefigurações pobres
da redenção, agora deu lugar à liberdade madura dos filhos de Deus que
depositam a fé no seu Filho (G 3.26; 4.1-7,9).Recapitulando, descobrimos
que a própria lei da antiga aliança nos ensina a morrermos para o
legalismo e o mérito próprio, visto que a lei, em concordância com a
promessa abraâmica, olhou adiante para Cristo e ensinou a justificação
pela fé. O evangelho não pode ser contraposto à lei no tocante à doutrina
da salvação. Todavia, o evangelho é uma suplantação gloriosa e um avanço
em relação à administração mosaica com as suas ordenanças cerimoniais. Ao
passo que no estabelecimento da nova aliança não há mudança da natureza
benevolente da salvação prometida e prefigurada nos dias de Abraão e de
Moisés, há um desvanecer da administração e da ordem da antiga aliança (Hb
8.13). Precisamos ver ainda que as instruções morais encontradas na lei —
os mandamentos de Deus revelados na antiga aliança — não foram colocados
de lado com as instruções redentoras para a circuncisão, o sacerdócio, os
sacrifícios e o templo.Greg L. BahnsenFonte: Lei e Evangelho, A Posição
Reformada Teonomista. Ed. Monergismo.
Nota: O Livro completo encontra-se no Sitio Monergismo em
PDF-http://www.monergismo.com/textos/livros/introducao-teonomia-debate_greg-bahnsen.pdf